segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Piada interna

Dois caçadores descansam nadando num igarapé. Ao saírem d‘água, surge uma onça. Um deles começa a se calçar enquanto o outro comenta: “Você nunca vai conseguir correr mais rápido que uma onça!” O outro responde: “Eu não preciso correr mais rápido que a onça. Eu só preciso correr mais rápido que você!”

Agora, o final da versão corredor descalço da piada: enquanto o corredor descalço já está longe, o outro cara é devorado ao fazer o lacinho do cadarço…

Piada (infame e antiecológica, eu sei) inspirada neste post, sobre situações de emergência e sapatos inapropriados.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Começando (parte I)

千里之行,始於足下。老子

Largar o tênis para correr não é um processo simples. E eu nem estou me referindo ao (re)aprendizado da técnica. Primeiro é preciso acreditar que o tênis não melhora a sua corrida.

Tênis não absorve o impacto quando se pisa primeiro com o calcanhar, como mostrado num vídeo em um post anterior. Ele enfraquece seu pé como uma bota de gesso usada por semanas (e você usa tênis há anos!) Ele não permite que o pé se movimente livremente, como deve. Aliás, este é uma das características alardeadas pelos fabricantes de tênis: controle de movimento. Como se a pronação fosse um movimento maléfico quando, na verdade, faz parte do processo de absorção de impacto embutido na estrutura do pé. Veja Haille Gebrselassie, um dos maiores corredores de longa distância de todos os tempos, pronando com se não houvesse amanhã num racing flat (um tipo de tênis bem simples, com pouco amortecimento, com pouca elevação de calcanhar e sem suporte medial) durante uma maratona, que ele venceu. Se pronar fosse tão errado, você não acha que o técnico dele, de nível mundial, o faria usar um tênis de controle de movimento?

Além disso, o arco medial longitudinal fica enfraquecido. Um arco é uma estrutura forte justamente por ser arqueada. A pedra em cunha do topo (chave, keystone) é quem impede a estrutura de ruir, justamente por estar sob carga. Se você quiser enfraquecer um arco, basta tirar a carga dessa peça estrutural. E é isso justamente o que faz o suporte medial dos tênis modernos.

Esse também é um dos motivos do “pé chato”. Nascemos todos com pés chatos e o arco plantar vai se desenvolvendo com o tempo. No entanto, se o pé não se movimenta como deve durante o crescimento da criança, o arco não se forma e o pé continua chato. Qual é o tratamento tradicional? Colocar aquelas botas ortopédicas “frankenstênicas,” que possuem uma curva acentuada para moldar o arco. Por não deixarem os ligamentos se fortalecerem, as botas tornam a região ainda mais fraca, de forma que o arco não se sustenta, colabando-se e perpetuando o pé chato. Sabe qual o tratamento preconizado atualmente? Estimular a criança a fazer suas atividades descalça, andando e correndo por aí, ou no mínimo, usando preferencialmente sandálias em vez de sapatos fechados. Isso explica por que em sociedades predominantemente descalças praticamente não há casos de “pés chatos”.

Um critério (furado) para se escolher o tipo de tênis é o grau de curvatura do arco plantar. Molha-se o pé e avalia-se a pegada. Há basicamente 3 tipos de pegada, uma com pouco arco, que tende a pronar mais, a normal e um arco excessivamente elevado. No pé chato, se usaria um tênis para controle de movimento (motion control shoes), de acordo com o que se comumente preconiza; pés normais usariam tênis de estabilidade (stability shoes); pés muito arqueados, tênis acolchoados (cushioned shoes). Porém um estudo mostrou que esse não é um critério válido: houve a mesma proporção de lesões no grupo que usava tênis segundo esse critério quando comparado com o grupo que usava, indistintamente, tênis de controle de movimento.


Há vários outros problemas com os tênis, mas esses são os mais evidentes e um outro, fundamental, vou abordar mais adiante. Agora que, espero, convenci você que o tênis convencional não presta, o segundo passo é afastar o medo de correr com o pé diretamente no chão.

As pessoas que se convencem a reaprender a correr descalças, em sua maioria, sempre perguntam se devem usar calçados minimalistas, como o Vibram FiveFingers (VFF). São várias as desculpas que já ouvi para não correr descalço:
  • “Mas o impacto não é maior?”
  • “Mas não vai criar calos e bolhas?”
  • “Mas não vai doer meu pezinho?”
Esses comentários são feitos independentemente de sexo ou sexualidade. Da mais fresca das patricinhas ao mais tosco lutador de MMA (para não apanhar deles, tudo bem, eles não usam o diminutivo). Há uma razão óbvia para essas preocupações. O pé é uma das regiões do corpo com maior número de receptores para tato e dor, com enorme representatividade no córtex cerebral. Pé dói. Muito. Pergunte para qualquer torturador—eles se amarram em dar varetadas nas solas de seus “clientes”. Mas por que diabos a evolução dotaria de tanta sensibilidade uma das regiões mais expostas do corpo?

Ora, e se para correr corretamente fosse necessário sentir o chão? Eu sei. É uma teoria radical para quem está acostumado a pisar nos travesseiros em que se tornaram os tênis de corrida. Um estudo mostra que os músculos responsáveis pelo amortecimento da passada são mais intensamente pré-ativados quando se corre com menos amortecimento. Ou seja, o corpo se prepara para o impacto que virá na próxima passada, absorvendo-o com maior eficiência. Para quem usa tênis, a maior parte da responsabilidade de absorver o impacto recai sobre eles, que são incapazes de fazer tal tarefa em um grau suficiente.

Se o pé sente que o chão é duro, que vai ter que suportar impacto, ele avisa ao cérebro para preparar todo o corpo para o impacto. O tênis acolchoado tapeia esse sistema. Com ele, achamos que estamos correndo em nuvens e sentamos a pancada na nuvem até nosso pé se firmar o necessário. O pé calçado também perde parte da noção da posição em que ele se encontra.

“Il piede umano è un’opera d’arte
e un capolavoro di ingegneria.”

Leonardo da Vinci.
Há um jeito muito simples de demonstrar que o tênis é incapaz de absorver impacto em grau suficiente: levante-se e saltite algumas vezes. Note bem como seu pé toca o chão. Sem dúvidas foi com a ponta. Não importa quanto de amortecimento tenha o tênis que você esteja calçando no momento. Duvida? Calce o tênis mais amortecido que você tiver. Saltite. Agora tente saltitar caindo sobre o calcanhar. O incômodo é imediato. Duvido até que você consiga aguentar mais que três saltos. Aquele pedaço de espuma embaixo do seu calcanhar serve apenas para estimular você a pisar com a única parte do pé com a qual você não deveria! Acredite: seu pé é mais eficiente que um tênis de 600 reais. Aumente sua auto-estima!

No outro lado do impacto está o piso. Dizem que os pisos modernos são bem mais duros que os pisos naturais. Pode até ser em geral. Porém, correr sobre uma rocha é como correr sobre concreto, bem como numa trilha de terra batida. Mesmo assim, acredito que pisar de calcanhar na grama provoca mais impacto que correr descalço no concreto. Impressionantemente, os corredores descalços logo descobrem que os pisos modernos são uma bênção. Planos e previsíveis, há poucas surpresas se comparados à savana, com seus espinhos, buracos e pedras escondidas na vegetação.

Cacos de vidros e agulhas infectadas são bem menos comuns que imaginamos. Isso me lembra uma piada de… ahn… vocês sabem de quem: “Ó raios! Uma casca de banana no chão! Vou escorregar novamente!” A melhor proteção para os pés são os olhos. E essa é mais uma vantagem dos pisos atuais, que permitem ver a uma distância segura qualquer desses obstáculos a tempo de evitá-los. Para correr em locais mal iluminados ou sobre grama ou mato, então sim, é interessante usar algum calçado. Olhe onde pisa.

Além disso, a sola do pé vai se tornando mais resistente e, com o passar do tempo, passa a não se ferir com tanta facilidade. Eventuais espinhos acontecem, mas nada que você mesmo, com uma agulha, não consiga tirar em 2 minutinhos. Mas o pé não fica cheio de calos. A pele fica mais espessa e resistente, como um couro macio, mas não fica ressecada ou calosa.

A pisada descalça difere da pisada com tênis não só ao se colocar o pé no chão, mas também ao retirá-lo. Na corrida calçada convencional, empurramos o nosso corpo para frente ao empurrar a perna para trás. Se mantivermos este padrão, com certeza criaremos uma bolha no pé. Neste caso é comum surgir no dedão, na bola do pé (metatarsofalangeana I) ou, a mais dolorida, na pele mais fina do dedão ou do 2º dedo (superficial às respectivas articulações interfalangeanas). Uma peça fundamental da técnica descalça é a retirada do pé do solo. Recapitulando: primeiro se toca com o antepé e, em seguida, com o calcanhar. Imediatamente depois, se recolhe o pé para cima, em direção à respectiva nádega (“banda”). A sola não desliza. Não há forças horizontais que provoquem o descolamento das camadas da pele. Correr descalço é justamente como saltitar, pular corda, só que caindo para frente. Eu já ouvi a expressão: o pé beija o asfalto.

Lembre-se: não empurre, puxe!

Beleza. Tênis não presta; descalço é o que há. Então para que servem os calçados minimalistas?

Veja bem. Vivemos numa sociedade de consumo, onde a tecnologia está aí para resolver todos os nossos problemas. Para emagrecer, é bem mais prático tomar um comprimido que reduzir e melhorar a alimentação e fazer uma atividade física; usamos frequencímetros (Polar) para avaliarmos nosso esforço ao invés de simplesmente senti-lo. É natural que se queira pagar para se resolver um problema ao invés de aprender como resolvê-lo.

É importante frisar que não se pode fazer uma transição suave entre a corrida calçada e a corrida natural. Pisar com o antepé é radicalmente diferente de pisar com o calcanhar. Ou se pisa de um jeito ou de outro. Assim, esqueça a ideia de ir comprando tênis cada vez menos amortecidos e mais minimalistas.

Apesar de praticamente não ter amortecimento, correr com um minimalista é bem diferente de correr descalço. Experimente colocar um Band-Aid em cada ponta dos dedos da mão e vá digitar ou fazer qualquer outra coisa com as mãos. Por mais fino que seja o material, ele ainda tira muito da sensibilidade. É isso que ocorre com os calçados minimalistas.

Durante o aprendizado da técnica de corrida natural, acho essencial que se treine verdadeiramente descalço. Sua sensibilidade estará totalmente preservada e toda dor que você sentir ou bolha que formar é resultado de uma técnica incorreta. Correr completamente descalço lhe dá um feedback que o calçado minimalista não pode dar. O pé descalço é inclemente com os erros. Lembre-se: correr descalço não dói. Se doer, alguma coisa está errada. Reavalie-se, filme-se ou peça para alguém experiente em corrida descalça observar você.

Christopher McDougall contou uma vez que, correndo calçado por causa do inverno, voltou a sentir dores nos pés. Consultou-se com Lee Saxby, um treinador de corrida descalça, que pediu a ele que descrevesse o que estava fazendo. Chris narrou a técnica perfeita, afinal ele escreveu a "bíblia" do corredor descalço. Lee mostrou o vídeo de Chris correndo—estava fazendo o oposto do que havia falado. Bastou tirar o calçado que a forma imediatamente se corrigiu e as dores desapareceram.

Correr com minimalistas não é o fim do mundo, não é sacrilégio. Mas deve ser tratado como segunda opção e não como padrão, como default. Minimalistas são importantes como proteção no escuro ou em terrenos muito "sujos" (pedras, espinhos etc.). Tiros curtos também podem ser dados com minimalistas (racing flats, spikes, VFF), pois há uma aceleração alta no início do tiro, que pode forçar a pele do pé e provocar bolhas.

Mesmo assim, quem sou eu para dizer o que você deve fazer? Se você se sente melhor correndo com calçados minimalistas, corra. São muito melhores que os tênis convencionais. Que, por sua vez, são melhores que ficar em casa sem fazer nada. Mesmo assim, sempre faça "reciclagens". Periodicamente dê uma corrida realmente descalço, mesmo que curta, para restaurar sua técnica, para sentir o chão, para voltar às raízes.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Nascido para Correr

A Experiência De Descobrir Uma Nova Vida
Christopher McDougall

Um blog de corrida descalça que se preze não tem como deixar de escrever sobre este livro. Lançado em 2009, ele se tornou referência para os novos corredores descalços, tornando-se, talvez, o principal divulgador do renascimento dessa técnica milenar.

Minha experiência com este livro foi bastante peculiar. Antes mesmo de lê-lo ou até mesmo de conhecê-lo, eu já estava bem convencido dos benefícios da mecânica da pisada com o antepé—a corrida natural. Eu estava treinando para o Ironman Florianópolis 2010, quando percebi que estava enjoando da minha playlist de mais de 2000 músicas. Corridinhas de hora e meia, duas horas e pedais de 3, 4 horas tornam qualquer repertório musical insuportável. Precisava ouvir outras coisas. Abri uma conta na Audible.com e comecei a baixar audiobooks. Stephen King e Douglas Adams foram minhas primeiras aquisições. No mês seguinte, com direito a mais dois livros e já tendo lido a respeito dele, baixei o “Born to Run: A Hidden Tribe, Superathletes, and the Greatest Race the World Has Never Seen.” Deixei ele separado para depois do Iron, quando eu começasse para valer meus treinos descalços.

Vale aqui um comentário sobre o título em português. Pelo que parece, a literatura está seguindo o caminho do cinema, onde os títulos dos filmes saem da cabeça do tradutor ou da distribuidora brasileira. Onde “The Green Mile” vira “À Espera de Um Milagre.” O que “A Experiência de Descobrir Uma Nova Vida” tem a ver com o subtítulo original? É para colocar nas pilhas de livros de auto-ajuda? Depois me chamam de metido a besta por ter ouvido o original em inglês. Se a tradução começou desse jeito…

Bom, mas vamos ao livro.

O livro começa com uma grande dúvida do autor: “Por que meus pés doem?” Christopher McDougall, um jornalista que já foi correspondente de guerra e que participou de diversos esportes radicais sem nunca ter se machucado, simplesmente não entendia por que o simples e natural ato de correr provocava tantas dores em seus pés. Seus médicos, os melhores da medicina esportiva, simplesmente diziam que correr exigia muito do corpo do praticante, que eventualmente cedia. McDougall ficou com isso entalado na garganta.

Durante uma viagem ao México, McDougall se depara com uma revista local que conta a história dos índios Tarahumara. Estes índios escaparam da invasão dos espanhóis simplesmente não os enfrentando. Viraram as costas e correram. Quanto mais os espanhóis adentravam o continente, mais os índios se distanciavam. Acharam paz numa região isolada, no noroeste do México, entre as escarpas das Barrancas del Cobre. A reportagem falava que esses índios corriam dezenas de quilômetros diariamente, mas em nenhum momento mencionava que eles viviam entrevados, com lesões incapacitantes. Ao contrário, entre seus melhores, havia cinquentões ganhando provas de 80 e 160 quilômetros. Para descobrir como eles conseguem este feito impensável, McDougall se embrenha numa região cercada de traficantes para poder conhecer seus segredos. E então começa toda a aventura.

McDougall passa a narrar diversas histórias com vários personagens pitorescos, como um tal de Caballo Blanco, passando por aborígenes da África do Sul, índios mexicanos e um professor de Biologia Evolutiva Humana de Harvard. As diversas histórias, interessantes e dinâmicas por si sós, são fragmentadas e intercaladas entre si, num crescendo que prepara o leitor para o desfecho: a tal corrida que o mundo jamais viu. Uma técnica manjada, mas que se mostra bastante eficaz neste tipo de história.

Até nos levar ao ápice da narrativa, McDougall passa pelos mais importantes temas que embasam a cultura e a ciência da corrida descalça. As raízes evolutivas, a teoria conspiratória dos fabricantes de tênis, as lesões comuns dos corredores, o treinamento de atletas de elite… Esses temas são tratados como personagens secundários—as histórias das pessoas é que são o centro do livro, fazendo com que a teoria seja absorvida pelo leitor praticamente sem querer. Não é, de forma alguma, um livro árido. Toda teoria científica é associada a história de alguém, o que dá uma característica humana ao livro, apesar de tratar de alguns tópicos que, se abordados da forma tradicional, se tornariam bem maçantes para o público leigo. Não tema: este livro é um romance de não ficção, não um ensaio científico. Spoiler: O ápice da narrativa não é a chegada da corrida e a ordem de chegada dos competidores, mas como a prova uniu participantes tão díspares e como eles se tornaram irmãos através da corrida.

Eu ouvi o livro durante meus treinos. Aliás, a narrativa empolgante tornou-se um estímulo a mais para que eu me animasse a vestir um short e uma camiseta, a tirar o tênis e, literalmente, por os pés na rua, por vezes até sem rumo ou relógio, pra me divertir durante uma boa corrida. Posso até ter melhorado meu tempo, mas minha meta agora é melhorar como pessoa. A corrida é só mais uma ferramenta para isso.