sábado, 16 de outubro de 2010

É simples, mas não é fácil

Chega de embromar. Já foram três posts de introdução. Está na hora de botarmos a mão na massa, ou o pé no chão—use o lugar comum que preferir.

Agora que você já se convenceu que deve correr descalço (quem me dera fosse fácil assim lutar contra o marketing milionário dos fabricantes de tênis…), vou ensinar como é a técnica. Lembre-se: ler é uma coisa, fazer é outra, ter alguém corrigindo o que você acha que está fazendo é uma terceira completamente diferente também. Assim, vou escrever algumas linhas gerais, colocar algumas figuras e, especialmente, alguns vídeos, mas você vai ter que experimentar para ver como é.

Existem diferentes abordagens para a corrida descalça. A que estou mais familiarizado é o Pose Method, criado pelo Dr. Nicholas Romanov, PhD em Educação Física e treinador da equipe inglesa de triatlo nos Jogos Olímpicos de 2000 e 2004. É um método baseado em biomecânica e cinesiologia, que me alinhei porque sou muito cartesiano. Se você curte a filosofia oriental e um cheirinho de incenso (que preconceito bobo, Erik), leia sobre ChiRunning. A mecânica é semelhante, mas eles costumam usar tênis mais convencionais, coisa que geralmente não aconselho.

A corrida descalça se fundamenta em alguns princípios, que listarei aqui e depois passarei a esmiuçá-los:
  1. pisada com antepé ou mediopé;
  2. impulso pela gravidade;
  3. postura alinhada;
  4. pisada sob o centro de gravidade; e
  5. passada curta de alta cadência.


1. Pisada com antepé ou mediopé
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A pisada com o calcanhar é a forma mais comum de se correr. Até mesmo entre atletas de elite, onde cerca de 75% deles pisavam primeiro com o calcanhar durante uma meia maratona. No entanto, esse estudo mostrou que, quanto mais rápido eles eram, maior a proporção dos que pisavam com o mediopé ou com o antepé. Portanto, você pode ser rápido pisando ou com o calcanhar (retropé) ou com o medio/antepé. Por enquanto, ainda não existem estudos que mostrem o quanto de lesões você vai ter correndo de um jeito ou de outro, mas há estudos que mostram que o impacto é maior ao se pisar de calcanhar.

 Nicholas T

A pisada com o antepé (região esverdeada) é geralmente feita de fora para dentro, ou seja, a região correspondente às cabeças do 4º e 5º ossos metatarsais toca primeiro o solo, sendo seguida pela restante do antepé e do mediopé (em amarelo).

A pisada com o meio do pé (mediopé) acontece simultaneamente na região em amarelo (correspondente ao 4º e 5º metatarsais) e o antepé.

Depois desses primeiros toques, que ativam o sistema de amortecimento do pé (arcos plantares) e o do tendão de Aquiles, o calcanhar finalmente toca o solo. Este toque deve ser o mais breve possível, pois, veremos a seguir, já está na hora de tirar o pé do chão para a próxima passada.

Para melhor entender, compare o vídeo de uma pisada com calcanhar com o vídeo de uma pisada com antepé.



Acima você pode observar que o calcanhar é a primeira parte do pé a tocar a esteira. Para isso acontecer, a perna teve que ser esticada (overreach) e a ponta do pé, levantada. Note o pico que surge no gráfico da força de reação do solo (FRS), na parte inferior do vídeo, assim que o calcanhar "martela" a esteira, mesmo com todo o amortecimento do tênis. A passada descalça com primeiro toque de calcanhar provoca um transiente de impacto ainda maior.

A passada com o antepé é bem distinta.




Aqui você nota que o corredor não levanta a ponta do pé. Ele pisa como se estivesse tentando alisar a esteira. Na passada com o pé direito, dá pra notar bem que a parte lateral do pé é que toca primeiro, formando uma onda que se espalha do 5º para o 1º dedo do pé. O pico de impacto simplesmente desapareceu, pois os mecanismos de absorção de impacto do pé e da panturrilha puderam ser ativados.


2. Impulso pela gravidade
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Convencionalmente acreditamos que o que nos faz correr para frente é nos empurrarmos com a ponta dos pés no final da passada. Na corrida descalça não é bem assim. A ideia é que quem nos impulsiona, na verdade, é a gravidade. O princípio é deslocar o centro de gravidade para frente e simplesmente acompanhá-lo com as passadas, para não cairmos de cara, como um bébado. Veja neste vídeo como o pobre do bebum simplesmente tenta alcançar (falhando, algumas vezes) seu centro de gravidade, sem precisar empurrar com seus pés. Com um pouco mais de coordenação do que ele, é basicamente isso que se faz para correr.

Dessa forma não se gasta energia à toa; não fazemos força empurrando. Apenas deixamos a gravidade fazer o trabalho dela de graça.


3. Postura alinhada
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Para "perseguirmos" o centro de gravidade, ele tem que estar à nossa frente. Para isso, é necessário inclinarmos o corpo. Mas é importante frisar que a inclinação vem da base, da ponta do pé, e não da cintura. O corpo tem que ficar reto, alinhado, só que não na vertical. Compare as imagens retiradas de um vídeo de antes e depois da correção.



4. Pisada sob o centro de gravidade
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Como vimos no vídeo da pisada com o calcanhar, para ela acontecer, o pé tem que estar bem à frente do corpo. Isso provoca uma ligeira freada no deslocamento do corredor, diminuindo seu rendimento. Assim, para evitarmos a freada e a pisada com o calcanhar, temos que pisar aproximadamente na projeção vertical do nosso centro de gravidade. Mais ou menos na sombra do nosso corpo sob o sol do meio-dia. Veja a foto ao lado, onde o pé direito do corredor, ao primeiro contato, está aproximadamente sob a projeção do seu umbigo, que é o ponto aproximado do centro de gravidade do corpo humano. Note, também, o joelho levemente dobrado, ajudando a amortecer o impacto.


5. Passada curta de alta cadência
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A corrida descalça procura otimizar o uso da elasticidade natural dos ligamentos e tendões dos pés, bem como do tendão de Aquiles.

Levante-se e comece a saltitar. O ritmo é tá-tá-tá-tá… Em torno de 180 ou mais pisadas por minuto. Agora force-se a saltar mais lentamente: tá… tá… tá… tá… Note como o esforço fica maior. O que aconteceu? No primeiro caso, toda vez que você tocava no chão (automaticamente com as pontas dos pés, não foi?), parte da energia cinética da descida do seu corpo foi armazenada como energia elástica nos ligamentos e tendões e foi convertida em energia cinética novamente, jogando você de volta para o alto. No caso dos saltos mais lentos, ao parar um pouco no chão, você dissipou toda a energia cinética. As próximas subidas passaram a depender exclusivamente de esforço muscular.

Assim, ao correr, você deve agir como se estivesse saltitando, só que como seu centro de gravidade vai estar deslocado, você vai se mover para frente. Em vez de usar apenas força muscular, você vai passar a usar 50% de elasticidade e 50% de força! Para isso acontecer, o ritmo deve ser de, pelo menos, 180 passos por minuto.

Para aumentar a cadência, mantendo a velocidade, o comprimento da passada tem que encurtar. A dica é pensar em tirar o pé do chão tão logo ele pise, puxando-o em direção à região glútea (bunda mesmo, vá lá). Por conta disso, você não vai ter tempo de esticar a perna, o que vai evitar a sobrepassada (passada aberta demais) e, consequentemente, a pisada com o calcanhar, fazendo você pisar com o antepé, abaixo do seu centro de gravidade, deslocado para frente devido a sua postura alinhada!

Finalmente ^

Não sei se você notou, mas todos esses cinco elementos são interdependentes. Para fazer um deles direito é preciso fazer os outros quatro. Não se assuste. É mais simples do que parece. No entanto, pode ser simples, mas não é fácil. O problema é que passamos anos correndo de uma maneira diferente. Tem que haver uma reprogramação do nosso cerebelo. Para isso, a prática da corrida descalça e de alguns exercícios educativos vão ajudar você a se readaptar.

Apareça nos encontros do grupo, sábados e domingos, às 18h, em frente ao bebedouro do Quiosque do Atleta, no Parque da Cidade (Sarah Kubitscheck). Corredores de todos os níveis e idades são bem vindos, não custa nada e é uma experiência bastante divertida.

Um comentário:

  1. Tá inspirado, hein!
    Legal estabelecer um encontro semanal fixo da turma de Bsb.
    Vou divulgar seu blog lá na comunidade.

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